31 de março de 2011

O Mundo Anda Tão Complicado

Gosto de ver você dormir
Que nem criança com a boca aberta
O telefone chega sexta-feira
Aperto o passo por causa da garoa
Me empresta um par de meias
A gente chega na sessão das dez
Hoje eu acordo ao meio-dia
Amanhã é a sua vez

Vem cá, meu bem, que é bom lhe ver
O mundo anda tão complicado
Que hoje eu quero fazer tudo por você.

Temos que consertar o despertador
E separar todas as ferramentas
Que a mudança grande chegou
Com o fogão e a geladeira e a televisão
Não precisamos dormir no chão
Até que é bom, mas a cama chegou na terça
E na quinta chegou o som

Sempre faço mil coisas ao mesmo tempo
E até que é fácil acostumar-se com meu jeito
Agora que temos nossa casa
é a chave que sempre esqueço

Vamos chamar nossos amigos
A gente faz uma feijoada
Esquece um pouco do trabalho
E fica de bate-papo
Temos a semana inteira pela frente
Você me conta como foi seu dia
E a gente diz um pro outro:
- Estou com sono, vamos dormir!

Vem cá, meu bem, que é bom lhe ver
O mundo anda tão complicado
Que hoje eu quero fazer tudo por você

Quero ouvir uma canção de amor
Que fale da minha situação
De quem deixou a segurança de seu mundo
Por amor

___



A M.F.M.

17 de março de 2011

Feliz aniversário

O dia começou uma merda. Acordei encaralhado e puto da vida sem o menor motivo. Virei para o criado mudo e peguei um cigarro. Acendi. Traguei. Olhei novamente para o criado mudo e vi que ainda restava meia garrafa de Cavalo Branco. Peguei e bebi na garrafa mesmo. Aprendi que é assim que um macho de verdade lida com um dia ruim. Bebendo uísque quente e na garrafa.

Tomei alguns goles e lembrei que tinha que levantar para trabalhar. Levantei e vi tudo girando. Fui até o banheiro, dei uma bela vomitada e uma cagada de uísque, me limpei, tomei banho e ri daquela merda toda. Parece que o dia estava começando a ficar engraçado.

Era 01 de Abril. Lembrei que era meu aniversário. Aliás, não tem como esquecer essa data. Cai justamente no dia da mentira. Já podia imaginar meus colegas de trabalho com aquelas brincadeiras babacas do tipo: “01 de abril!” Enfim, fiquei puto novamente e fui atrás do meu uísque.

Eu estava me embebedando mais do que era permitido para trabalhar. Não havia colocado nada sólido no estômago ainda, mas a garrafa de uísque estava quase no fim. Procurei alguma coisa pra comer. Minha namorada, que havia dormido comigo noite passada, não deixou nada pronto. Ainda por cima foi embora sem me avisar. E ainda esqueceu-se do meu aniversário. Já não se fazem mais namoradas como antigamente, pensei. Peidei em homenagem a ela, quase morri sufocado com a carniça que acabara de sair de dentro de mim e fui procurar algo rápido para comer. Já estava quase atrasado. Mais uma vez fiquei puto. É incrível como tenho ficado bastante puto ultimamente.

Incrível como um homem que mora sozinho tem sempre um estoque de miojo em seu armário. Bacon, costela, camarão, carne, galinha, peixe, verduras e legumes, sopa de miojo, churrasco de miojo, miojo ao molho branco, enfim, uma variedade de sabores especialmente preparada para filhos da puta preguiçosos como eu. Era só ferver a água, esperar alguns minutos, afogar a massa do macarrão, escorrer e jogar o tempero por cima. “Caralho, bem que miojo poderia ser um pouco mais prático”, pensei. Depois de todo esse processo, peidei de novo. Mas dessa vez não fiquei pra conferir o odor.

Comi quatro miojos lembrança de costela e fui ao quarto me vestir para trabalhar. Meu trabalho era um saco. Absolutamente burocrático. Eu trabalhava no departamento de carimbação oficial do IML. O presunto chegava lá, o pessoal fazia a limpeza e os outros procedimentos. No fim de tudo, eu olhava nos olhos do morto e dava o aval se ele estava liberado ou não. Se estivesse liberado, dava uma carimbada autorizando o envio do corpo à família. Porém, antes de o corpo sair, alguém da família deveria se dirigir a minha sala e assinar um documento que deveria ser autenticado e protocolado em três vias, ficando uma no IML, outra com a família e a outra enviada para o Governo do Estado com o intuito de fazer o censo de quantos presuntos chegavam a nós por mês. Eu não entendia muito bem o porquê disso. Apenas fazia o que mandavam.

Chegando ao trabalho, vejo de longe meus colegas com os seus sorrisos amarelos estampados naqueles rostos babacas. – Bom dia, Chinaski. Disse um deles.

- Bom dia um caralho! Tô comendo é cu, né conversa não. Respondi forçando um sorriso.

-Sabe que dia é hoje? Perguntou outro.

-01 de abril, porra. Dia da mentira. O que tem demais nisso?

- Não está esquecendo de nada?

- huuummm...

-Hoje é sexta feira, seu bosta. E é a primeira sexta feira do mês. Sabe o que isso significa?

-Caralho, esqueci! Respondi pasmo.

Toda primeira sexta feira do mês, o chefe do IML organizava um happy hour totalmente de graça. Chopp, cerveja, uísque, jurubeba, mulheres. Tudo free. Ele dizia que como nosso trabalho era bastante chato e estressante, nada melhor do que começar o mês enchendo o cuzinho de cana. Como era sábio esse homem. Deus o abençoe.

-Mas o chefe falou que esse mês não vai rolar o happy hour. Disse um deles.

-Por quê? Perguntei incrédulo, praticamente chorando.

-Ah, cara... no último que rolou ele acha que você extravasou demais. Até hoje ele não engole a estória de que você comeu no banheiro da boate a Ana Bisturi.

Ana Bisturi era do setor de autopsia. Ela tinha esse nome porque, como nenhuma outra pessoa naquele IML, tinha uma facilidade impressionante de cortar as coisas. Tanto as mortas, como as vivas, se assim fosse necessário.

-Ah cara, isso já faz parte do passado. Eu e a Ana Bisturi somos grandes amigos. Eu disse.

-Amigos demais, para o gosto do chefe. Você sabe, Chinaski. O chefe é louco por ela. É bom você ficar longe e não se meter em mais encrencas. Senão a próxima autopsia que a Ana vai fazer é do seu bilau. Que por sinal, deve ser uma visão do inferno.

- HAHAHA. Eu ri. –Vão tomar no cu. Eu preciso trabalhar. Até mais.

-Até.

Fiquei triste por não rolar o happy hour daquele mês. Mas fiquei mais triste ainda porque nenhum filho da puta desses lembrou que era meu aniversário. Nem minha namorada, nem meus amigos, nem meus pais, ninguém, absolutamente ninguém havia lembrado que era meu aniversário. Bando de filhos da puta. Só estão preocupados com seus próprios cus, refleti.

Aproveitei que não tinha muito movimento aquele dia e adiantei todo o trabalho. Passei a manhã carimbado como um louco. Meu Deus, de onde vinha tanta gente morta? Se esse ritmo não diminuir, daqui a uns dias sou eu que morro de tanto trabalho.

Perto da hora do almoço, minha secretária, que por sinal era muito gostosa, bateu a minha porta:

-Sr Chinaski, posso entrar?

-Claro, Rosinha, fique à vontade, respondi, tendo um leve princípio de ereção.

-Sr, Chinaski, eu sei, que apesar de todo mundo só lembrar que hoje é o dia da mentira, é também seu aniversário.

- Oh, Rosinha! Você lembrou. Finalmente alguém nessa porra lembrou que eu existo. Estou tão feliz.

-O que o senhor acha de irmos almoçar pra comemorar?

-Claro, claro! Oh, como estou feliz. Onde vamos?

-Não sei, no caminho a gente escolhe.

Peguei minhas coisas e a acompanhei.

Saímos e eu pensei que Rosinha nos levaria a um restaurante de nome sugestivo, chamado Coma Tudo. Digo sugestivo porque os atendentes são gays, o gerente é gay e muitos clientes, fora eu e Rosinha, também são gays. Os garçons te servem tentando fazer aquele olhar sedutor, falando algo do tipo: “- o que o senhor vai querer hoje? Franguinho a frufru com molho especial? É o prato do dia. E a racha, vai ficar só na alface?” Enfim, sempre desconfio que o nome é Coma Tudo porque se você vacilar, come até o cara que lava os pratos. Uma situação nada agradável essa.

Porém, eu me enganei feio. Rosinha nos levou a um restaurante reservado e pediu mesa só para dois. O restaurante era uma coisa muito sofisticada e a comida parecia ser boa. De entrada, veio um cara todo empacotado perguntando se iríamos beber algo. Rosinha pediu um casillero Del diablo. Para comer, pedimos batata rostie e bradwurst com mostarda escura. Eu nunca havia nem ouvido falar naquele prato. Mas parecia ser bom.

O vinho chegou e tratamos logo de abastecer nossos copos. Meu Deus, como era delicioso aquele vinho. Bebi como um camelo bebe água no deserto. Rosinha era fraca para bebida, no fim da primeira taça, ela já ria a toa. Tratei de dar conta do resto da garrafa.

A comida de nome estranho chegou e estava bem apetitosa. Comemos como dois cavalos. No fim, eu já não agüentava mais. Pagamos a conta e fomos embora.

No caminho de volta para o trabalho, Rosinha comentou como o dia estava bonito e disse ainda que nós tínhamos bastante tempo para tomarmos um vinho que estava na casa dela antes de voltarmos ao trabalho. Achei a ideia excelente e involuntariamente, fiquei de pau duro. A combinação mulher gostosa, mais vinho, mais só nós dois em seu apartamento me deixava bastante eufórico. Rosinha era uma mulher direita e jamais se insinuou para mim. Contudo, sempre há uma primeira vez e sinceramente, eu achava que ela estava precisando de uma boa dose de pica. Sorte a minha.

Chegamos ao seu apartamento. Estava um calor dos infernos. Rosinha tirou seu paletó e me disse que iria ao quarto tirar outras coisas. Nem é preciso dizer que quando ela falou isso, tive mais uma ereção.

- Fique à vontade. Ela disse. –Volto já.

-Ok. Eu disse.

Esperei ansiosamente no sofá por ela. Fiquei imaginando que ela estaria tomando banho e voltaria com uma lingerie preta matadora. Passado alguns minutos, Rosinha me aparece com um bolo enorme, seguida por minha namorada, meus pais, meus amigos de trabalho, meu chefe e Ana Bisturi. Todos cantando “parabéns, pra você...”

Enquanto isso, eu continuava no sofá... nu... de pau duro.

14 de março de 2011

Por causa de uma gostosa

- Qual o oposto de livre?

- Preso?

- É, deve ser. – Tomei mais um gole da minha cerveja. E continuei:

- Você tem alguma palavra preferida?

- Atmosfera. – Disse, depois de pensar um bocado.

- Sabe, eu tenho uma palavra preferida...

- E qualé?

- É “queda-livre”.

- Mas aí seriam duas palavras...

- Sim, eu sei, eu sei. É o que os professores de português chamam de palavras compostas.

- Mas por que essa palavra?

- Pô, não sei... Não sei se é porque eu só gosto da palavra e alguma coisa da sua etimologia, ou se algo no conteúdo me atrai.

- Que que tem?

- Que que tem, que, não pode haver queda-presa. Porque se for queda presa, vai deixar de ser queda.

- Sim...

- É por isso que eu gosto de queda-livre.

Então tomamos mais um gole de cerveja e pedimos prum garçom felá-da-puta, mal-humorado e com má-vontade em trazer a calabresa com fritas.

- Mas... – continuei. – Mas, será que é possível medir as palavras?

- Como assim, letra por letra?

- Não, digo... a palavra “tijolo”... com que eu posso medir essa palavra. Digo, com quantos centímetros esse meu tijolo será medido.

- Depende de que tipo de tijolo você tá falando.

- É... – tomei mais um gole. – Mas deve existir algo que meça... deve existir algo para medir as palavras.

- Deve? Por quê?

- Porque da mesma forma que existe um céu, existe um chão.

- An, sei sei...

- E qual é o tamanho idéia da sua atmosfera?

- Acho que bem grande...

- Viu, como você pode medir a sua atmosfera?

- Acho que temos diferentes tipos de medidas.

- Tudo bem, podemos até ter diferentes tipos de medidas, mas... os meus 2,2 centímetros literários, podem equivaler a talvez; 1,9 centímetros literários seus.

- Ok, mas que a minha atmosfera é grande, é.

- Minha queda... eu gostaria que ela fosse infinita.

- Por quê?

- Eu gosto da idéia de cair pra sempre, porque vai deixar de ser uma queda para ser um vôo.

- É, não deixa de ser um vôo. Se você estiver caindo, é só ficar de cabeça-pra-baixo, e vai estar subindo.

- Qual a maior palavra que pode existir?

- Maior palavra?

- Digo... se a gente pode medir as palavras, qual seria a maior palavra?

- Não sei... talvez “amor”?

- Naaaam, isso já tá manjado demais...

- Que tal, absoluto?

Finalmente chegaram as batatinhas e as fritas...

- Garçon, outra cerveja aí, na moral. – Pedi. – Mas veja... depende do tamanho do absoluto. - Voltei a conversa.

- Porra, absoluto, vai ser sempre absoluto, cacete.

- Ok, ok... Se deve existir uma maior palavra, deve existir uma menor, um átomo de palavra.

- É, deve existir.

- E como a gente alcança essa porra?

- Com um telescópio literário.

- Porra, que idéia do caralho!

- Que foi, que foi?

- A gente não precisa medir a palavra pra ver qual é a maior, basta saber qual é a substância Elemental da palavra, porra!

- Como?

- Simples... você disse atmosfera, e o que pode conter substancialmente na porra da tua atmosfera.

- Acho que... – Ele deu um gole. Todo o mundo que eu desconheço.

- Então, porra! A gente faz assim, a gente pega a palavra, sei lá, por exemplo: “cafona”, e depois tira as suas medidas, e compreende seu elemento básico... E uma vez desfragmentando tudo da palavra fica mais fácil em estendê-la ao infinito.

- Massa... como?

- Acho que... se perdendo na palavra. Deve existir uma palavra que uma vez dita, modifique totalmente o mundo, modifique totalmente o momento, e dessa palavra, seremos escravos, até que uma vez dita, ela consiga nos libertar.

Até que passou uma gostosona perto do bar:

Que tal criarmos teorias universais?

- Benza-te, Deus.

- É muita mulher pra uma pitoca só, olha!

- Ah, se eu fosse homem!

- E tu és o quê, porra?

- Sou menino!

- Ali, peito mandou lembrança, viu.

- Essa tem cara de quem pede um tapa!

- Bote fé, bote fé.

Após o silêncio da concentração melancólica e sexual, voltamos a realidade:

- Mas sobre o que estávamos falando mesmo?

- Sei lá...

E perdemos a maior descoberta literária da humanidade, por causa de uma mulher gostosa.

10 de março de 2011

A piromaníaca

- Você tá sentindo um cheiro estranho? – Perguntei.

- Não... – Ela respondeu fazendo careta.

- É sério, é um cheiro estranho, um cheiro incomum. Tá sentindo, não? – Voltei a insistir na pergunta.

- Nem faço idéia do que você está falando.

- Pô, eu não tô ficando louco, não. É um cheiro estranho, mirmã...

- Poderia descrever esse cheiro? – Ela me perguntou com um ar de desafio.

- Tudo bem... – Eu disse. – É um cheiro familiar, um tanto quanto nostálgico. – Após refletir bem, cheguei numa conclusão: - Tudo bem, é cheiro de São João, só pode!

- São João? Como assim?

- Bem... Eu lembro que quando eu era pequeno, eu e meu amigo Will Chinaski, na época era só Wilsu Bezerra, arrente ia prum muro perto do edifício mandala, e mandava bala.

- Como assim?

- A gente ficava estourando os tijolos com fogos do são João.

- ...

- A gente pegava peido de veia e rojão para estourar o muro, era divertido ver destruição.

- “Divertido ver a destruição”, - Ela repetiu como um psicopata repete um crime.

- É, sério, então... a gente estourava o muro com os fogos, e quanto maior era o estouro, maior era a nossa diversão. E esse carro aqui, tá cheirando a... (puta que pariu!) – Comentei, por um carro quase bater em mim. – Esse carro aqui tá cheirando a pólvora, é isso, tá um cheiro estranho de pólvora.

- Não estou sentindo nada, querido. – Ela disse na maior inocência fingida do mundo!

Então, após cruzarmos outra e mais outra rodovia, eu me perguntava, para onde mesmo estávamos indo, afinal, parecia tão vago nosso destino.

- Você tem certeza que quer voltar para o seu interior? – Perguntei firmemente.

- Sim, sim. Eu odeio aquele lugar, mas preciso acertar algumas contas. – Falou com uma certa vingança na voz.

- Acertar certas coisas? , como assim?

Ela riu, simplesmente riu, não me levou à sério.

E após chegar naquele interior, em que todo mundo fica observando se a placa do carro é de fora ou não, é simplesmente um bom motivo para a novidade da cidade.

Então fomos direto à fazenda ou rancho, ou seja lá como se chama aquela casa familiar dela.

Conheci os pais dela, bem conservadores. O pai dela com aquele super bigode que nem o Mario Bros ousaria usar. E a mãe dela, sempre com um terço na mão, como se estivesse pedindo proteção a todos os segundos.

- Você sente falta daqui? – Perguntei.

- Nem um pouco.

- Como?

- Nem um pouco, eu disse.

- Ok, ok... mas afinal, o que tem pra se fazer nessa cidade, hein?

- Nada.

- Como assim, nada?

- Exatamente nada, vai se acostumando com a idéia, é por causa disso que eu fiquei neurastênica, sempre pensei que podia sair daqui e ir para um lugar que combinasse comigo. O tédio me corroia por dentro.

- Era tão terrível assim.

Ela fez um gesto dramático com a cabeça.

Eu nada mais falei, e apenas me concentrei em jogar algum jogo no meu celular, esperando que o tempo passasse.

E finalmente a noite veio, e prometia bem mais tédio.

Eu sei que era legal a natureza, verde, ar puro, e todo aquele clima de tranqüilidade e blá blá blá. Mas sinceramente, a admiração perante à calma, só dura no máximo uma hora, e olhe lá.

Foi quando o criado – Macenor, entou na casa com uma grande novidade pra conta:

- Sinhazinha, sinhazinha! O circo chegou na cidade, o circo chegou na cidade, sinhazinha! Sinhazinha!.

Eu mal pude acreditar: Ainda chamavam a filha do senhor de engenho de Sinhá Moça! Ah, mas era mais do que um motivo para tirar onda com ela depois.

Enquanto o quase escravo espalhava para a casa inteira que estava havendo um grande circo na cidade, e que a propaganda era um palhaço gritando pra lá e pra cá... A noite prometia.

- O que você acha da gente ir? – Eu perguntei.

- Com certeza. – Ela disse com um olhar psicótico.

Oito horas em ponto, estávamos lá, entrando naquele circo seboso e bem improvisado. A arte em se manter na vida através da própria arte era até admirável. Para se ter idéia, o preço da entrada era tão somente um alimento não perecível. Ou várias caixas de fósforos, ou sei lá o quê. Pagamos apenas dois reais pra entrar e estava tudo certo.

E começou o espetáculo.

Enquanto o palhaço começava a apresentação do circo, e dava boas vindas para todos os espectadores. As pessoas estavam hipnotizadas por qualquer tipo de novidade.

Eu juro que tentava rir das piadas, enquanto todos riam para se acabar e se acabavam rindo, de fato.

Então foi a vez das bailarinas. Nada de impressionante, apenas pessoas habilidosas fazendo várias curvas, mas tudo bem, melhor do que ficar no riacho.

Colocaram uma foca equilibrista, ou alguns trapezistas, colocaram até engolidor de facas!

E finalmente veio o grande mágico. Por algum motivo ele falava com um sotaque castelhano. Acredito que quando alguém vem de muito longe, dava mais gosto de se ver naquela cidade.

E finalmente, ele fez aquele velho truque em tirar um coelho do chapéu. Muitos aplaudiram, é claro. E eu ficava entediado.

- Olha, eu vou aqui no banheiro, tá? – Ela me informara.

Após, ter ido longe demais, eu pensei:

- Peraí, aqui não tem banheiro!

Tarde demais, ela se fora, e eu lá sozinho naqueles bancos improvisados com a iminência em cair.

Depois de ouvir mais algumas piadas sem graça de alguns dos palhaços e suas respectivas palhaçadas. Ela retornara.

- Pronto. – Falou ao sentar do meu lado.

- Onde você tava?

- No banheiro, eu não disse?

- Mas aqui não tem... – E de repente, deixei-me interromper ao sentir outro cheiro estranho: - Olha, você tá sentindo?

- O quê?

- Um cheiro estranho?

- Você peidou?

- Não, sua escrota! É um cheiro... Ei, isso é cheiro de gasolina!

- Não to sentindo nada. – Fez um gesto irônico.

- Ei, e tá vindo de você! Você tá cheirando a gasolina. Isso mesmo! Você tá cheirando a gasolina,meo deos. O que você andou faze....

E de repente ouvi uma grande gritaria!

Após olhar bem ao centro do espetáculo, o palco principal começara a pegar fogo. Enquanto eu ficava de boca aberta, ela pegou na minha mãe e me puxou, para enfim corrermos.

Era inacreditável ver todo aquele fogo se espalhando.

- Puta que pariu! Foi você quem fez isso?

Ela não respondeu, apenas ficou rindo, e ria como uma louca, enquanto corria, simplesmente corria com um ar de vingança realizada.

- Puta que pariu, mirmã, você tá queimando o circo! Você botou fogo no circo. – Eu disse, enquanto corríamos na multidão aterrorizada.

- Mirmã, como você faz isso? – Enquanto perguntei ela parou de correr e ficou observando o real espetáculo, o fogaréu queimando furiosamente, sem piedade de qualquer pano ou palha.

- Não é lindo? – Ela disse rindo, com um ar cheio de graça. – Ver o circo pegando fogo?

- Mirmã, você é louca, louca de pedra, louca!

E nos observamos os malabaristas, os trapezistas, todos que compunham a magia do circo, tentando revidar ao fogo, tentando resistir ao fogo sem qualquer eficácia. E certamente naquela cidade não havia qualquer sinal de bombeiros. Era tudo tarde demais, o primeiro a notar aquilo tudo foi o palhaço. Que de desesperado, passou a ser o primeiro homem triste; e finalmente caiu em prantos e começou a chorar. Nunca em minha vida pensei em ver um palhaço triste, a sua real face de tristeza. Aquilo sim era uma coisa inédita.

A louca do meu lado se acabava... Simplesmente ria de tudo aquilo sem hesitar, sem disfarçar a qualquer empatia. Ela ria como se fosse a última risada de uma vida.

- Sua piromaníaca do caralho!, louca! Fudida...

Ela mal se importava com meus xingamentos, e eu ficava hipnotizado pelo fogo se espalhando e pela cena;

- Vai, sério, por que você fez isso? – Perguntei.

- Essa cidade, nunca viu tanta movimentação. – Disse ela numa certeza impressionante. – Esse será o dia conhecido como o fogo no circo nessa cidade.

- Mas por que você fez isso, pessoas estavam se divertindo ao assistir aquela porra de espetáculo fudido!. – Essas pessoas vão ter mais história pra contar depois disso, vão se divertir pro resto da vida.

- Mas e as pessoas que trabalham no circo?

- Vão voltar a se reerguer, fácil fácil. Basta um empreste consignado e levantam a porra dessa lona e vão para outra cidade.

- E qual a graça nisso tudo?

- Em ver um palhaço chorando? Toda...

- Sério mesmo, por que você fez isso?

Eu nunca vou me esquecer dessa cena: ela se virou em minha direção, olhou profundamente nos meus olhos e disse:

- A vida sem o perigo, é um tédio, é uma lenta agonia.